Insegurança jurídica, a outra pandemia
Insegurança jurídica, a outra pandemia
Brasil | “O juiz não é nomeado para fazer favores com a justiça, mas para julgar segundo as leis.”
Tinha razão Nelson Rodrigues ao dizer que até para atravessar uma rua e chupar um picolé do outro lado é preciso ter confiança, conhecer o terreno em que se está pisando com incerteza mínima e segurança máxima possível. Pois a virtude da confiança, inspirada, entre outros atributos, pela segurança jurídica, é também uma das exigências da vida em sociedade, já que sua ausência destrói amizades, namoros e casamentos, impede trocas voluntárias, acordos e acertos e prejudica as atividades econômicas mais simples, como vender, comprar, emprestar, empregar, poupar, investir etc.
Um dos motes empregados a três por dois como espécie de declaração de boas intenções é o pomposo Estado Democrático de Direito, locução empolada e imponente e que é replicada aqui e ali, lá e acolá e — para combinar com sua “pose” — algures e alhures. É quase uma palavra de ordem, uma senha recitada para ganhar admiração, curiosamente utilizada na maioria das vezes por pessoas cujos próprios atos revelam pouco apreço pela lei e pela democracia. Os instrumentos legais e o sistema democrático pressupõem, afinal, a existência de segurança jurídica, uma qualidade que se assenta em três colunas: a da previsibilidade e qualidade das normas; a da certeza de sua aplicação; e a da baixa incidência de ações judiciais, um trio que não se encontra — para insistir na linguagem afetada — nenhures, ou seja, em nenhum lugar do Brasil.
No ano de 2020, em um total de 128 países, ocupamos a 67ª posição no ranking mundial de segurança jurídica, segundo o World Justice Project Rule of Law Index, a principal referência mundial de fontes originais e independentes que pesquisam o chamado Estado de Direito. O índice é elaborado a partir de pesquisas nacionais com mais de 130.000 famílias e 4.000 profissionais e especialistas jurídicos. Embora ocupemos uma classificação intermediária, um pouco acima da primeira metade do total de países (52% de 128), nem por isso devemos descuidar das preocupações. Primeiro, porque pioramos em relação ao ano anterior, quando ocupávamos a 58ª posição. Segundo, com certeza quase absoluta, a situação tenderá a se agravar em 2021.
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Trata-se de um problema crônico em nosso país, com raízes históricas fincadas em um Estado que já desembarcou em Cabrália estabelecendo regras arbitrárias e beneficiando grupos específicos, em detrimento do bem comum. São tradicionais entre nós as incertezas quanto à aplicação de cipoais cada vez mais complicados e inextricáveis de leis e regulamentações, mutações constantes no labirinto de normas sobre tributação, tarifas sobre comércio exterior e relações de trabalho. Isso sem falar em cinco processos de impeachment abertos contra presidentes da República desde 1945 (Getúlio Vargas, Carlos Luz, Café Filho, Fernando Collor de Mello e aquela senhora estocadora do ar em movimento), em uma revolução (1930), um golpe (1937), um contragolpe (1964), um namoro curto com o parlamentarismo (de 1961 a 1963) e nas várias mudanças de moeda e “pacotes econômicos” — entre os quais cinco crimes fatais contra a ordem econômica, os congelamentos de preços cometidos entre 1986 e 1991.
Ora, segurança jurídica é a antítese desse quadro, é estabilidade política, é critério nas regras do jogo e nas relações judiciais, é ausência de mudanças arbitrárias em leis, normas e regulamentos e é uniformidade em sua interpretação. Não foi por outra razão que o ex-ministro da Fazenda tucano Pedro Malan disse que no Brasil até o passado é imprevisível, um oximoro bem a propósito.
Os efeitos da multipolaridade jurídica sobre as atividades econômicas são desastrosos, mas a nuvem de incertezas que produz não turva apenas a economia, porque se estende à aplicação das leis penais, à segurança física dos cidadãos e às suas próprias vidas. É desalentador escrever isto, mas no Brasil não existe império da lei, se a entendermos como um conjunto de normas gerais de justa conduta, claras, simples, válidas para todos, de ladrões de quintal a ex-presidentes e ministros corruptos. Regras estáveis e prospectivas certamente não surgem a partir de quimeras como as embutidas na Constituição Federal de 1988. Nascem de valores, usos, costumes e tradições aceitos pela população. Demarcam deveres e direitos. Estimulam o trabalho em vez de onerá-lo. Desestimulam o crime, em vez de abrir-lhe convidativamente portões, pórticos, portas e pernas e até imputá-lo às vítimas.
Nas atividades econômicas, a segurança jurídica é um requisito imperioso, que não garante o sucesso nem assegura a prosperidade, mas cuja falta certamente estorva o empreendedorismo e, portanto, o progresso. Quem contrata um novo funcionário, se a legislação trabalhista pode ser alterada ou interpretada de acordo com os humores de diferentes juízes? Ou compra um imóvel, caso o contrato de compra e venda seja sujeito a mudanças? Ou cria uma empresa importadora, na presença de dúvidas quanto a mudanças futuras na política comercial ou cambial? Ou, ainda, quem se atreve a abrir um estabelecimento comercial perto de uma área dominada pelo tráfico, sabendo que a polícia está sendo impedida de atuar contra os traficantes “donos da área”?
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Resumindo, podemos evocar o sábio aviso de São Paulo aos coríntios (1º Cor. 14:18), de que quando só saem sons confusos da trombeta — e a sonoridade da trombeta da Justiça em nosso país tem sido uma algazarra insuportável! — nenhum soldado se apresenta para o combate, tratando de seguir a Lei de Murici e cuidar apenas de si.
É óbvio que para a economia funcionar bem, o empreendedorismo florescer e gerar prosperidade e as decisões relevantes para o crescimento econômico — que são as de longo prazo — serem incentivadas, é preciso que o Estado cumpra o seu papel de zelar pela segurança jurídica, provendo um mínimo de tranquilidade para que os atores da economia busquem seus objetivos escolhendo os meios naturais existentes. Em outras palavras, a segurança jurídica contribui para reduzir incertezas e riscos que travam o ambiente de negócios e dá suporte a decisões econômicas simples, como o que consumir, quanto investir, o que vender. Portanto, é condição necessária para a existência da economia de mercado, que é a única estrada para o progresso conhecida até hoje.
As dificuldades de interpretar normas confusas, de adequar-se a regras complicadas e escapar de imprevistos desagradáveis são tantas e tamanhas que obrigam muitas empresas a manter setores jurídicos pesados, com muitos advogados, ou a incorrer em custos de terceirização. Isso implica perda de competitividade, que se incorpora a um dos conhecidos e aparentemente eternos inimigos do nosso futuro, o Custo Brasil.
Que tal um exemplo, extraído de uma assustadora golfada de semelhantes, de como a insegurança jurídica impõe prejuízos à atividade econômica? Em março passado, a famosa rede de churrascarias Fogo de Chão foi obrigada pela Justiça a reintegrar funcionários que demitira em 2020, em consequência do impacto brutal da pandemia. Pois não é que, além do absurdo de obrigar a empresa a readmiti-los, que equivale a um estranho meter-se a dar ordens em casa alheia, a Justiça do Trabalho estabeleceu multa de R$ 17 milhões para a empresa, por “danos morais coletivos”? A decisão confirmava a liminar obtida pelo Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro em junho do ano passado, que determinara a reintegração dos funcionários. E, para completar, a sentença determinava ainda uma multa diária de R$ 10 mil por trabalhador, caso a empresa descumprisse as obrigações impostas pela interpretação de uma legislação sabidamente confusa.
A liminar de maio de 2020 baseou-se no argumento de que houve demissão em massa sem justa causa, sem pagamento de verbas rescisórias, ou apenas com o pagamento de parte delas para alguns empregados e, ainda, que não houve negociação com o sindicato da categoria, o que, para as leis trabalhistas, é irregular, pela grande quantidade de demitidos. Na nova decisão judicial, lê-se uma pérola como as que só o conceito de “justiça do trabalho”, derivado de Mussolini, pode produzir: “Considerando-se que as dispensas coletivas superam o âmbito individual de um trabalhador, atingindo uma coletividade de empregados que, junto com suas famílias, perdem sua fonte de sobrevivência, estamos falando, sim, de um ato coletivo, inerente ao direito coletivo do trabalho e não apenas do direito individual do trabalho”.
Cabem, en passant, dois comentários: o primeiro é de puro respeito ao nosso idioma, pois o “sim” da sentença é redundante (embora tolerável), além do laivo senhorial; e o segundo, como tenta ensinar incansavelmente há séculos o liberalismo clássico, é que só faz sentido falar em direitos individuais e não em “direitos coletivos”. Como dizia um velho liberal, ônibus, metrô e trem, que são os “coletivos” mais conhecidos, não possuem direitos nem obrigações, que são atributos exclusivos de seus motoristas e usuários.
É evidente que a provisão de segurança jurídica é obrigação dos três Poderes: o Legislativo precisa elaborar leis claras e sem brechas para interpretações que deem margem a filigranas jurídicas e dribles à lei, tão a gosto de alguns operadores do Direito; o Executivo deve cumprir as leis e respeitar os direitos e deveres de indivíduos e empresas; e o Judiciário deve abster-se de decisões movidas por ideologias políticas, respeitar a Constituição, ser ágil nos julgamentos e evitar a qualquer custo mudanças inesperadas de jurisprudência. E — nunca é demais dizer — os três Poderes devem ser independentes. Alô, alô, responda, responda com toda a sinceridade: alguma dessas exigências rudimentares está sendo cumprida no Brasil?
Há diversos focos de insegurança jurídica no Brasil: os estruturais, como a quantidade absurda e de complexidade estonteante de leis, normas e regulamentos e a incerteza quanto ao andamento das reformas estruturais — a administrativa, a tributária e as privatizações; os conjunturais, como as dúvidas quanto aos desdobramentos da pandemia sobre a economia e a saúde, o abre e fecha protagonizado por certos governadores e prefeitos, a soltura de criminosos contumazes e a proibição de operações policiais contra o tráfico. Porém, sem dúvida, o maior exterminador de confiança nos últimos tempos tem sido o espetáculo de ativismo jurídico encenado no teatro da Corte Constitucional. O Tribunal exibe um concerto executado por músicos sem talento, em sucessivos movimentos de invasão às atribuições dos outros Poderes, de decisões arbitrárias sobre assuntos inteiramente fora de seu conhecimento e competência, todos em crescendo e com andamento prestíssimo. A apresentação avança diante de uma plateia estupefata, a ponto de vários juristas ilustres e respeitados a classificarem como desrespeito à Constituição Federal. Algo que, em definitivo, é absolutamente inaceitável.
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Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. @ubiratanjorge.iorio
Revista Oeste.
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