Narrativas de um ACS: ‘Os agentes de saúde agregam valor às suas comunidades’
Narrativas de um ACS: ‘Os agentes de saúde agregam valor às suas comunidades’
Agentes de Saúde | Conheça Henio Marques, o agente comunitário de saúde reconhecido por criar projetos que aumentaram o bem-estar das comunidades de Serrinha, no interior da Bahia.
O setor público cresceu desde meados da década de 1980, impulsionado principalmente pelos municípios. Segundo o estudo “Três décadas de evolução do funcionalismo público no Brasil (1986-2017)”, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), apenas um em cada dez servidores públicos no país é da esfera federal. De 1986 a 2017, o número de vínculos municipais aumentou 276%, saindo de 1,7 milhão para 6,3 milhões. Isso quer dizer que o Executivo municipal é o maior empregador do setor público no Brasil. E quase metade das ocupações corresponde aos profissionais de educação e saúde: professores, médicos, enfermeiros e agentes de saúde. Eles ganham, em média, um terço do salário dos servidores federais.
Elo de ligação entre as comunidades e o SUS (Sistema Único de Saúde), porta de acesso de muitas pessoas à atenção primária em saúde, e ponta da estratégia da saúde da família, sob muitos aspectos os ACS (agentes comunitários de saúde) são representativos de parcela significativa do funcionalismo público no Brasil. O país conta hoje com 260 mil ACS que recebem um piso de R$ 1.400,00 para uma jornada de 40 horas semanais. Eles exercem papel importante no acolhimento e mapeamento de comunidades junto às unidades básicas de saúde. As práticas educativas dos agentes realizadas diariamente no contato com os moradores, especialmente nas visitas domiciliares, são um meio importante de divulgação de informações seguras para a prevenção das doenças e a promoção da saúde.
Há 24 anos ACS de Serrinha, no interior da Bahia, Henio Dantas, além de exercer todas essas funções, também cria projetos para trazer ainda mais valor e bem-estar à sua comunidade. As ações que desenvolve, segundo ele, “dão aquele tempero de pimenta baiana” na rotina. Elas vão desde iniciativas para plantar flores nas calçadas e incentivos para que todos saibam os nomes dos vizinhos, até o “Faltou por quê?”, projeto em que ele se aliou com a Secretaria de Educação e passou a aproveitar as suas visitas domiciliares para levantar os motivos da ausência dos alunos na escola.
Ele também é figurinha fácil nas conferências municipais, estaduais e nacionais sobre saúde. Dantas é mobilizador nacional e o único ACS a integrar a equipe do projeto “Saúde é meu lugar”. Realizado pela Rede Brasileira de Escolas de Saúde Pública em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz, e a Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde. O projeto visa reunir e divulgar histórias sobre experiências de trabalho em saúde em todo o Brasil — em mostras online, presenciais e em uma plataforma com acervo de vídeos, áudios e textos permanentes. Ele nos conta aqui algumas das histórias que publicou lá.
Henio Dantas é o entrevistado da série “Gestão Pública”, uma parceria do Nexo com a república. O projeto traz, ao longo dos meses, entrevistas em texto na seção “Profissões” — são conversas com profissionais que atuam na administração pública e ajudam a transformar a vida dos brasileiros.
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Gestão Pública
Quem: Henio Dantas Marques
O quê: Agente comunitário da saúde
Onde: Junto ao SUS
No serviço público: Atua como elo de ligação entre os moradores de Serrinha e o SUS e desenvolve projetos para aumentar o bem-estar das comunidades
Por que você escolheu o serviço público?
HENIO DANTAS
Por várias questões. Primeiro eu busquei no serviço público uma segurança profissional, uma certeza de um emprego garantido, mas não foi só isso. Eu quis ser agente comunitário porque sou muito identificado com a minha comunidade. Eu já prestava serviços voluntários e era a melhor forma de eu manter essa ligação forte. Ser agente comunitário é muito mais do que encaminhar para o médico ou levar um remédio para casa de quem precisa. É agregar um valor à sua comunidade. E quando comecei como ACS eu não tinha noção da grandeza que é a educação popular em saúde.
Quando se fala em profissionais da saúde geralmente se pensa em médicos e enfermeiros.
Os agentes comunitários de saúde se sentem desvalorizados?
HENIO DANTAS
Sentimos muito. Estamos na linha de frente, não só agora na pandemia. Sempre estivemos promovendo a educação e a saúde nas nossas comunidades. Seja preenchendo fichas, fazendo buscas ativas de qualquer agravo de doença, mapeando os pacientes, nem que seja para trocar um curativo. E ficamos tristes quando não somos reconhecidos como profissionais de saúde. Buscamos essa valorização e reconhecimento.
O ACS é a ponta do iceberg. Ele deixa o fluxo das unidades de saúde ativas constantemente. E, quando as unidades estão fechadas, nós nos desdobramos para conseguir encaminhar os atendimentos.
Qual a função de um agente comunitário de saúde?
HENIO DANTAS
É difícil de dimensionar o que faz um ACS. Na escrita, ao pé da letra, o agente comunitário é aquele que faz visitas domiciliares, faz triagem de pessoas que têm agravos de doenças. Nessas visitas também acompanhamos vacinação, pesamos e medimos as crianças de 0 a 5 anos, fazemos o acompanhamento do pré-natal das gestantes, dos diabéticos. Nós rastreamos e buscamos ativamente doenças como tuberculose, hanseníase e depressão. Mas a verdade é que, além das buscas e triagens de agravos de doenças, nós somos de tudo um pouco. Temos que ser psicólogo, mediador, educador e às vezes até delegado. Nós lidamos com famílias com pensamentos diferentes, mas que esperam da gente uma orientação. Nos perguntam de tudo, desde marca de repelente até a melhor creche, passando por marcas de geladeiras e provedores de internet. Mas muitas vezes também as pessoas só querem ser ouvidas. Então eu só sento e escuto. É um papel de relevância enorme nas comunidades. A saúde tem várias vertentes.
Qual impacto o seu trabalho gera?
HENIO DANTAS O trabalho dos ACS tem um impacto enorme, pois ele leva o cidadão para dentro do sistema de saúde. Nós somos o elo de ligação entre o SUS e as comunidades, levamos a estratégia do programa da saúde da família nas costas. Eu, por exemplo, convenci um senhor de 75 anos a fazer um exame de próstata. Ele tinha um preconceito enorme e dizia que seu pai e seu avô nunca fizeram esse tipo de coisa. Conversei tanto com ele ao longo de muito tempo que ele finalmente se convenceu. E, no final das contas, ele tinha um princípio de câncer e pôde se curar porque foi diagnosticado precocemente.
As prefeituras municipais e secretarias de saúde que sabem trabalhar em parceria com os ACS transformam a saúde da sua população. Como circulamos muito nos territórios, a gente avisa para a secretaria quando o esgoto de uma obra estoura, onde está faltando iluminação, onde precisa fazer capinação. A gente pode criar uma ligação direta também com a Secretaria de Educação e ajudar a ver quem não está na escola.
Nesses 24 anos você criou alguns projetos para sua comunidade. Pode falar sobre eles?
HENIO DANTAS
Eu já promovi várias ações, não fico estagnado. Gosto sempre de botar aquela pimenta baiana para dar mais gosto ao trabalho. Eu tenho um projeto ligado à Secretaria de Educação que se chama “faltou por quê?”. Quando eu saía para trabalhar, notava que muitas crianças estavam fora da sala de aula, brincando na rua, passeando de bicicleta, mas nada de escola. Aí me interessei e fui nas escolas saber se as respectivas diretoras e professoras sentiam falta desses alunos. Elas disseram que sim e, então, passei a ir em busca do motivo das faltas. Semanalmente, eu passava no colégio, fazia levantamento de quais alunos estavam faltando mais e depois passava nas casas para entender o porquê. Aí a gente descobriu que eram inúmeras coisas. Às vezes, as crianças não iam porque não tinha sapato, porque a calça estava rasgada ou porque faltava comida. Às vezes não iam porque tinham pais drogados, apanhavam em casa. E, uma vez descoberto o motivo, eu criava um elo de ligação entre os órgãos competentes para ajudar essas crianças.
Para mim, a saúde também envolve reconhecer e valorizar as pessoas. Pensando nisso, promovi uma ação para que todos na comunidade conhecessem seus vizinhos de porta e vizinhos das ruas próximas pelo nome. Isso porque eu vejo a satisfação que as pessoas sentem quando eu bato à porta e chamo pelo nome e sobrenome. Não como mulher de fulano ou filho de beltrano. E essa ação trouxe um senso de comunidade e de identidade muito bacana, e que também impacta o bem-estar das pessoas.
Já desenvolvi ações também para a plantação de flores para enfeitar as ruas e chamei os moradores para plantarem flores nas calçadas de terra. E, mais recentemente, tenho usado meu próprio exemplo para promover uma mudança alimentar no bairro. Eu era obeso, pesava mais de 132 quilos, e além das minhas próprias questões de saúde — como enxaquecas, hérnia de disco —, comecei também a sofrer discriminação no trabalho. Resolvi mudar quando percebi que as pessoas já não estavam querendo mais me receber. E comecei a emagrecer fazendo reeducação alimentar, de forma natural, com exercícios leves. A comunidade foi acompanhando meu movimento. Por meio do meu exemplo, muitas pessoas se inspiraram para ter um estilo de vida mais saudável. Consegui muitas consultas com nutricionistas e também trouxe incentivos a práticas esportivas. Uma colega me pediu para ajudar o marido dela e, depois que o ajudei, muitas outras pessoas na comunidade fizeram esse pedido. Idosos passaram a ter diabetes e hipertensão mais controlada. É muito emocionante ver o meu poder de exercer uma influência tão positiva.
Alguma situação que tenha te marcado mais?
HENIO DANTAS
Tem algumas. Uma vez fui convidado para falar sobre a profissão do agente comunitário de saúde no Instituto Federal. Nesse dia, depois da palestra, uma jovem bonita virou para mim e disse que queria me agradecer por ter feito parte da vida dela. Eu perguntei como. E ela respondeu que a mãe lhe havia contado que eu a acompanhei e pesei com 30 dias de nascida até os 5 anos de idade. E que, depois dos 5 anos, não deixei de monitorá-la para que ela tomasse todas as vacinas até os 10 anos. Aí ela me disse: “Se eu hoje sou uma mulher saudável, isso tem a sua contribuição”. Esse reconhecimento da comunidade e dos pais é muito gratificante e marcante.
Os agentes comunitários muitas vezes são referências mais importantes do que os próprios médicos nas comunidades em que atuam? Por quê?
HENIO DANTAS
A comunidade nos considera verdadeiros profissionais de saúde porque sabem que nos viramos para levar saúde até eles. Mas, fora dali, não temos esse mesmo reconhecimento.
Temos prestígio e nos tornamos uma referência porque somos íntimos, temos elo de ligação direto e estamos sempre ali. Quando eu abro o portão da minha casa no meu domingo e dou de cara com o bar, as pessoas já perguntam que dia vai ter o médico, que dia vai ter vacina, que dia vai ter remédio. Eu sei nas comunidades qual a relação íntima entre marido e mulher, como os pais veem os filhos e como os filhos veem os pais, se a família está unida ou separada. E, por ética profissional, ficamos com essas informações só para nós. O ACS trabalha de domingo a domingo.
Uma vez cheguei na casa de uma mulher e ela estava nua porque queria me mostrar as manchas que tinha pelo corpo. E olha que o marido dela é policial! Ela dizia que confiava em mim, que não precisava da opinião do médico. Claro que pedi para ela se vestir e marcar uma consulta.
Agora, com a pandemia, eles recorrem a nós para perguntar se é preciso mesmo usar máscara, qual tipo, quais os sintomas, as precauções. Somos o principal elo de informação sobre coronavírus para eles.
Quais os desafios no dia a dia do trabalho do ACS?
HENIO DANTAS
O desafio já começa antes de sair de casa. A gente muitas vezes não tem nem uniforme, nem EPI (Equipamento de Proteção Individual) adequado, nem protetor solar para trabalhar andando na rua de sol a sol. Do portão para fora, a gente enfrenta sol, chuva, poeira, lama, cachorro que avança na gente e criminalidade. Nós entramos em bairros e ruas dominadas pelo tráfico.
Fora os desafios físicos, há o desafio de construir uma relação íntima e de confiança com a comunidade e não deixar que esse laço de profissional, morador e amigo se desfaça. As nossas barreiras também estão na limitação da prestação de serviço do SUS. Às vezes, as nossas unidades de saúde não têm como dar suporte para as pessoas que precisam, seja por falta de médico, vaga ou insumos.
Agora, por causa da pandemia, estou vendo um índice de depressão maior na comunidade e também entre os agentes comunitários, mas não encontro quem atenda essas pessoas. Nosso salário está defasado, não temos reconhecimento do nosso valor. Por causa da pandemia, muitas secretarias de saúde não deixavam agentes comunitários entrarem [nas casas das pessoas visitadas], eram atendidos do portão para fora. Mas o médico e o enfermeiro entravam. E não paramos de trabalhar em momento algum, estávamos ali na linha de frente. A gente estava fazendo busca ativa, batendo nas portas. Mesmo sem entrar, continuamos passando de casa em casa fazendo a triagem dos sintomas. E sempre faltou equipamento adequado, não só por causa da pandemia, não. A gente nunca teve como se proteger.
Como você conseguiu manter seu trabalho durante a pandemia?
HENIO DANTAS
Foi um desafio enorme. O primeiro passo foi superar o meu próprio medo e juntar coragem e força para sair de casa. Eu nunca passei por uma pandemia como profissional de saúde e tinha esse medo de ser contaminado. Eu comprei EPI [com dinheiro] do meu próprio bolso porque também tenho que cuidar da minha própria saúde e da minha família. Passamos a trabalhar do portão para fora, sem entrar nas casas, mas não deixando de desempenhar o nosso trabalho no momento que a comunidade mais precisava do nosso apoio. E eu comecei o trabalho de tirar o pânico das pessoas com esclarecimentos sobre a doença. E muitas vezes acabei entrando nas casas e me botando em risco para ajudar a aliviar a depressão das pessoas, principalmente idosos. Muitos passaram por crises enormes, as pessoas estavam passando fome e necessidade sem sair de casa. Para os que não tinham o que comer, eu fazia vaquinha, fazia a feira e entregava na porta de casa.
Mas foi muito difícil, as pessoas não queriam nos atender, não queriam pesar as crianças e, às vezes, nem receber remédio porque achavam que a caixa do remédio podia estar contaminada. Teve dia de eu sair e não conseguir atender nenhuma casa, de me sentir discriminado nas ruas. Mas eu não parei e sigo indo até hoje. Não parei e nem vou parar. Foi uma superação, mas o SUS e a saúde são mais fortes do que tudo isso.
Governos importam?
HENIO DANTAS
É um pouco complicado falar sobre governos porque a discussão tende a polarizar. Mas a verdade é que não importa se você vai tomar a vacina do lado esquerdo ou do lado direito. O fato é que todos precisamos tomar as injeções, e a gente precisa do governo para gerir quem vai tomar, quando e como. As pessoas precisam de uma liderança para organizar as questões sociais, e, por isso, a importância dos governos.
“Gestão Pública” é uma série do Nexo em parceria com a república.org, um instituto apartidário e não-corporativo, dedicado a melhorar a gestão de pessoas no serviço público, em todas as esferas de governo. Em quase quatro anos de atividade, já apoiou mais de 100 projetos. Este projeto conta com a consultoria de Daniela Pinheiro e com edição de Marcelo Coppola.
Uma parceria do Nexo com a república.
Por Clara Becker
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