O CRIME E A QUEDA - Flordelis: uma tragédia brasileira.
O CRIME E A QUEDA - Flordelis: uma tragédia brasileira.
Publicado no Conexão Notícia em 26.ago.2020.
Brasil | De protetora dos inocentes a assassina do próprio marido. Amor, ódio, vingança, mentiras. Conheça com detalhes a história que abalou o país. Por Fábio Gonçalves.
No dia 3 de março de 2018, pouco mais de um ano antes de ser assassinado na própria casa, o pastor Anderson do Carmo contava a história da sua família perfeita na Sede Estadual das Assembleias de Deus, no Brás, cidade de São Paulo.
Aos fiéis atentos e emocionados, ele foi dizendo, com todos os trejeitos pentecostais, o enredo meio real, meio fictício que inventou para promover a si mesmo e a sua esposa: a Flordelis.
Anderson disse ali que conheceu sua varoa num culto em que ela cantava como passarinho, numa sexta à noite, na Favela do Jacarezinho, Rio de Janeiro. Conta ter chegado no cômodo diminuto e abarrotado com sessenta crentes nos bancos mais uma porção em pé; disse, também, com notas novelísticas, ter logo notado a jovem morena com sua guitarra louvando belamente ao Senhor. Amor à primeira vista.
No conto, Anderson trabalhava no Banco do Brasil e estudava Administração no Méier. Segundo ele, fora àquela igrejinha pois restava curioso a saber quem era a famosa evangelista da madrugada, a missionária dos bailes funks, a resgatadora dos meninos perdidos e pregadora dos traficantes.
Explicou que Flordelis ganhara no Jacarezinho e circunvizinhança fama de juíza, profeta, mística e santa acolhedora. A moça, conquanto também humilde e sem recursos, embrenhava-se nos becos perigosos do morro recém-tomado pelo Comando Vermelho e saía a tomar das mãos dos bandidos quantas crianças e adolescentes pudesse, enfrentando homens armados até os dentes só com o poder da palavra, com oração e com louvor. Era um espécie de Débora das Tribos de Israel, sacerdotisa a quem recorriam todos os pobres, sobrecarregados, oprimidos e injustiçados.
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Desde aquele culto, disse Anderson, ele se tornou o parceiro inseparável de Flordelis na sua quixotesca missão evangelizadora. E também se casaram.
Quase tudo invenção.
O Pastor Anderson fora, na verdade, um dos adolescentes que Flordelis abrigara em sua casa no início dos anos 90. Era um dos seus filhos adotados.
Pouco se sabe dos primeiros trinta anos de vida de Flordelis dos Santos de Souza. Em entrevistas, ela resume sua infância e adolescência à inquietude que sentia ao ver seus amigos se corrompendo no ambiente hostil das comunidades cariocas — obra-prima do socialista Leonel Brizola. Pouco diz de si mesma, de sua relação com os pais, da escola, de seus primeiros romances. Sua narrativa começa sempre na filantropia dos anos 90.
Nesta época, início da década, ela já tinha três filhos biológicos: Simone, Flávio e Adriano. Era mãe solteira. Ainda assim se lançou à missão salvacionista e passou a recolher em sua casa jovens em situação vulnerável, em vias de entrar para a atraente criminalidade dos morros ou para a prostituição dos bairros chiques. Na primeira leva, abrigou cinco: André, Carlos, Mizael, Cristina e Anderson — o futuro marido e Pastor.
Diz-se que Anderson e Flordelis se conheceram em 1991, quando o menino somava algo em torno de 12 anos. Três anos mais tarde, em 1994, ele com 15, ela com 33, começaram a se relacionar e se assumiram marido e mulher.
Nesse meio tempo, porém, algumas coisas esquisitas, cabeludas, devem ter acontecido no barraco do Beco da Guarani, onde moravam Flordelis e seus protegidos.
Pergunto: o que mais podia resultar disso de juntar sob o mesmo teto, num barraco espremido, no calor lúbrico da Cidade Maravilhosa, uma porção de adolescentes, meninos e meninas exalando feromônio sem qualquer impeditivo de sangue que pudesse assossegar seus impulsos do amor?
Sabe-se de pelo menos um casal formado entre esses primeiros meio-irmãos: Simone, filha biológica, e Anderson, filho adotivo. Os jovens entabularam um caso, talvez a primeira grande paixão de ambos — e que males não advêm de primeiras paixões traumaticamente frustradas?
Anos depois, como já ficou dito, o namorado da filha caiu nos braços mais maduros da mãe, e Anderson foi de pouco em pouco se tornando o chefe daquela família. De filho passou a pai.
E parece que nele havia tino para o mando. Mais esperto que os outros, filho de uma família menos desestruturada — Anderson não era órfão, nem drogado, nem bandido —, logo o rapazote assumiu entre os irmãos e depois enteados uma liderança natural, carismática. Claro que sempre há exceções, e, por exemplo, o Flávio, filho biológico de Flordelis que contava quase os mesmos anos de Anderson, não aceitou com tanta parcimônia a apoteose do intruso.
Como seja, Anderson, menino de bom papo, descolado, foi ganhando terreno.
Ainda na década de 90, ele percebeu o potencial mercadológico de toda aquela bonomia. Passou a filmar os cultos e as cantorias de Flordelis e vender os CDs e VHs pelas ruas do Rio de Janeiro, levando junto uma espécie de portfólio com as menções feitas à esposa na mídia, como para promovê-la. O garoto visionário, seja por malandragem, seja por real devoção, enxergava na amante uma artista a ser lapidada.
Mas antes do sucesso ou fracasso dessa empreitada marqueteira do Pastor Anderson, vale dizer que foi no começo do enlace entre a mãe e o filho afetivo, Jocasta e Édipo de segunda mão, que aconteceu o milagre de multiplicação dos adotados.
A 12 de setembro de 1994, o Rio de Janeiro foi palco de mais um crime horrendo. Homens que faziam parte de um grupo de extermínio passaram de carro e abriram fogo contra meninos de rua apinhados na calçada da Central do Brasil. O estampido dos tiros acordou a Cidade.
Diz a narrativa de Anderson que naquela mesma madrugada 37 sobreviventes do atentado, lá no Centro, correram até o Jacarezinho a pedir socorro à santa da favela.
Essa versão ainda é a oficial. No entanto, uma rápida pesquisa no mapa carioca mostra que da cena do crime até o barraco da Guarani distam pouco mais de 10 quilômetros. Na sola e na raça, calcula-se duas horas para chegar.
Imaginem, então, o cortejo tétrico de dezenas de crianças, quatorze das quais bebês de colo, ensanguentadas, olhos vidrados, atravessando avenidas inteiras diante de carros, viaturas, postos policiais, sem que vivalma as detivesse.
Não obstante a inverossimilhança, é a versão que ficou. De fato, a casinha da auxiliadora dos pobres, da noite para o dia, ficou abarrotada de crianças — e o caso ganhou repercussão nacional.
Então, depois de um período em evidência na grande mídia e nas repartições do juizado de menores do Rio, que queria tirar da benfeitora a guarda irregular da filharada, Flordelis seguiu sua rotina de cultos, obras de misericórdia e cuidados domésticos, ao lado de Anderson, sob a sombra do anonimato — como sói ser a vida dos santos.
A glória mundana
Mas a vida de caridade modesta ficou para trás a partir de 2009.
Data desse ano o filme “Flordelis — Basta uma palavra para mudar”. No elenco, feras globais do quilate de um Reynaldo Gianecchini, Bruna Marquezine, Marcelo Anthony, Deborah Secco, Cauã Reymond, Rodrigo Hilbert, Fernanda Lima e Letícia Spiller. Os artistas, comovidos com a história da mulher que colecionava feitos heróicos e miraculosos, não cobraram cachê.
Esta obra traz a versão imagética da mesma narrativa contada pelo Pastor Anderson, na vigília do Brás, entre lágrimas, preces e berros em língua angélica.
A película imita um documentário em que os atores dão os depoimentos no lugar dos filhos de Flordelis. Cada um deles narra, como se fossem os reais agraciados, como a mãe adotiva os tirara do caminho do crime, das drogas, da prostituição, do abandono.
É de se perguntar: não seria mais natural os verdadeiros beneficiados representarem-se a si mesmos? A história não ganharia em vida, em força expressiva, em emoção? Em regra, não são assim os documentários?
Em toda a filmagem, a única personagem real é Flordelis. Entre um testemunho e outro ela aparece contextualizando os episódios e dando sua visão sobre os fatos. No fim, ela aparece apelando aos chefes da bocada para que não matem um jovem, e os bandidos a obedecem.
Como seja, toda a esquisitice passou batida. A história era por demais bonita para ser posta em dúvida. Seria até inumano questionar. Só um crápula, um canalha, um fascista torceria o nariz, apontaria contradições. Passou batido.
Vale notar que Anderson, filho-marido-empresário, foi o produtor executivo do filme. Talvez também o roteirista.
No final das contas, a peça foi bem recebida pelo público e pela crítica — menos pela qualidade da produção que pela história narrada — e a renda foi revertida às justas causas da Dona Flor. Com esse mesmo dinheiro a enorme família, já somando 50 irmãos, se mudou para o casarão bacana em Niterói, onde a maioria deles vive até hoje.
Também com a grana do filme, Anderson lançou Flordelis na carreira musical, emplacando a esposa-mãe na badalada MK Music, importante gravadora no segmento gospel cujo dono é o senador Arolde de Oliveira.
Alavancado pelo filme, o primeiro CD de Flordelis, o “Fogo e Unção”, de 2010, bombou e ganhou o Disco de Ouro, com mais de 40 mil cópias vendidas.
A mulher simples, de traços grosseiros, cabelos rebeldes e dentes faltantes, mulher que parecia ter a alma toda dominada pelo amor caridoso, de pouco em pouco ia se transformando numa diva da música gospel.
Data desta mesmo período, 2009-2010, o upgrade na carreira missionária do casal.
Conta-se que desde os idos de 90 Flordelis realizava cultos cristãos em sua casa. Mais tarde, como o número de fiéis crescera a mais da conta, foi preciso mudar as reuniões para a igrejinha do tal primeiro encontro do jovem Anderson com sua ninfa varoa de melífluo cantar, ainda na favela de Jacarezinho. Por fim, em 1999, fundaram oficialmente a Comunidade Evangélica Ministério Flordelis, igreja erguida com a colaboração dos filhos mais velhos — alguns dos quais inclusive foram ungidos pastores.
Não obstante, o filme foi divisor de águas também no ramo eclesial. Com o dinheiro e a fama que obtiveram, em setembro de 2010 o casal resolveu organizar um megaevento em São Gonçalo: o Grande Congresso Internacional de Missões. Alugaram para tanto um terreno de 9000 m2, ergueram ali um galpão enorme, em 60 dias, e botaram lá, no espaço de uma semana, mais de 100 mil pessoas.
Depois disso a sede do Ministério Flordelis, que agora tem uma porção de filiais, se transferiu para um templo de respeito também em São Gonçalo. E lá Flordelis continua realizando seus cultos, lendo Bíblia, expulsando demônios.
E nessa toada foi só aumentando a fama da Mãe de 55, como ela gosta de se apresentar. Mais CDs foram lançados, a história de amor e superação da família ganhou reportagens especiais no Fantástico, no Domingo Espetacular, no Rodrigo Faro, o casal saiu de canto a outro, no Brasil e no estrangeiro, dando palestras e comovendo corações.
Havia como melhorar?
Quem vê a fachada não vê os quartos
Não obstante todas essas conquistas, o interior da casa era ignoto. No fundo, ninguém sabia o que de fato se passava com aquele povaréu. Cerca de 60 estranhos vivendo sob o mesmo teto. Adultos, adolescentes, crianças. Cada um com seus ressentimentos, com seus traumas. Afinal, não morava ali a filha que viu a mãe roubar seu primeiro namorado? Mais: é muito maldoso suspeitar que Anderson, no viço da idade, corria procurar na antiga namorada o que a mãe-esposa, já em caminhos da velhice, não podia mais lhe dar? Há quem diga que isso é fato líquido, que de fato rolava esse caso paralelo. E, se era assim, o que não passava pela cabeça dos filhos que assistiam aos pais vendendo uma vida perfeita na TV e na igreja enquanto a realidade, a realidade que só a eles era dado enxergar, era muito outra?
Depoimentos recentes de filhos que não puderam contar no filme badalado a própria história, dão conta de que o Lar Flordelis vivia num duro regime político.
Havia o casal governante, uma elite aristocrática e a plebe. O monarca, dono do Tesouro, vivia em constante tensão com a rainha; filhos legítimos, mais a leva de adotados pré-chacina, formavam um grupo de privilegiados, a quem cabia os melhores alimentos, os presentes especiais, os cargos nas igrejas — portanto poder e dinheiro —, as boquinhas na política; depois havia os quarenta e tantos filhos tardios que viviam amontoados nos quartos mais simples, que só comiam pão seco no café e macarrão com salsicha nas outras refeições, filhos que não tinham a atenção dos pais senão quando diante das lentes de algum repórter. O casal vivia no terceiro andar. O segundo era reservado aos nobres. O rés-do-chão cabia à gentalha. Que mágoas, que rancores uma tal divisão não haveria de criar?
Servos de dois senhores?
Malgrado as estranhezas, quem tenha siso há de concordar que a primeira Flordelis, a altruísta e abnegada, era uma mulher admirável. É possível que caiamos do cavalo e descubramos que mesmo aquela primeira versão fora uma fraude. É possível. Entretanto, antes disso, fica nossa inocência cristã e nosso reconhecimento de que a obra daquela irmãzinha crente de fé inabalável era nada menos que heroica, digna mesmo de filmes com os melhores atores, e de romances, poemas, loas, canções.
Porém, a Flordelis que emerge em 2009, depois do filme, é toda uma atriz, uma personagem de si mesma — em boa medida fabricada pelo marido. Via-se que os seus bons feitos estavam se transformando em peças de um marketing apelativo, propaganda através da qual ela e Anderson iam conquistando o mundo enquanto perdiam a casa.
O auge desse processo foi a eleição da mulher à Câmara dos Deputados. Nas eleições de 2018, Flordelis foi uma das mais votadas legisladoras do Rio de Janeiro, com 190 mil votos, e assim chegou ao Parlamento Nacional — com o marido por detrás da campanha.
De humilde acolhedora dos órfãos num beco esquecido de uma favela carioca passou a cantora importante, dona de igreja bem frequentada, palestrante viajada, política bem-sucedida. Flordelis deixou o terreno árido da caridade para fazer do palanque da vanglória o seu patíbulo.
O Crime e a Queda
A 16 de junho de 2019, todos os jornais noticiaram a morte brutal do Pastor Anderson. Trinta tiros à queima-roupa na garagem do casarão da família no bairro de Pendotiba, Niterói. Uma barbárie.
No enterro, centenas de pessoas rodeavam o caixão diante do qual chorava convulsivamente a recém-viúva. Aos seus ombros, alguns dos filhos. Dentre os quais, Flávio, um dos oito nobres, filho legítimo que jamais engoliu o pai-irmão.
No mesmo dia Flávio foi preso. Horas depois, a polícia prendia também Lucas, filho adotivo de Flordelis. Na ocasião, porém, ambos foram detidos por motivos alheios ao crime de sangue: Flávio por violência doméstica; Lucas por tráfico de drogas.
Abriram-se enfim as portas da casa e o país sentiu um cheiro pútrido e rançoso.
Daí começaram as contradições de Flordelis. Num primeiro momento ela alegou que o casal sofrera uma tentativa de assalto. Segundo ela, na noite anterior ao crime o casal saíra a dar uma volta de carro no Rio, como se adolescentes. Disse que jantaram, namoraram, que estiveram felicíssimos. Então, no retorno, afirma ela, notaram um motoqueiro suspeito a lhes seguir. Viu-o, mas ele logo desapareceu.
Chegando em casa, noite plácida, bairro tranquilo, volta das 3h da matina, Flordelis entrou primeiro na casa para ver os filhos (?) e, conta ela, recomendou ao marido que fechasse logo o portão da garagem — porquanto ele tinha o costume, no Rio de Janeiro, de só o fechar quando dentro de casa (?).
Então, numa versão dada à polícia, Flordelis narra que já dormia quando ouviu os disparos. Nesta versão, depois de se alvoroçar, desceu e viu o marido morto.
Noutra versão, a mais propalada, a mulher diz que subiu, travou contato com o filho Ramon, de 18 anos, e então ouviu seis estampidos: de primeiro quatro, um pausa, e então mais dois.
Diz ela que se criou um tumulto na casa e que não encontrava por lá o marido. Nessa versão, ela não viu o corpo de Anderson, pois impedida pelos filhos.
De todo modo, a versão do assalto perdeu força, pois câmeras de segurança não flagraram nem sinal de perseguição.
Para complicar ainda mais a trama, celulares importantes simplesmente sumiram, dentre os quais o do Pastor. E mais: quando técnicos foram periciar o carro do casal, Flordelis os impediu firmemente, no que a família da vítima protestou e começou a acusar a deputada de estar obstruindo as investigações.
Dali um tanto Mizael, filho adotivo de Flordelis e vereador em São Gonçalo, rompeu com a mãe, suspeitando que ela fraudara uma carta em que ele supostamente se confessava mandante do crime. Mizael era conhecido na política com o adjunto da Flordelis. Agora é só Mizael.
Depois descobriu-se que Simone, ex-namorada do irmão-padrasto, tinha um caso com um homem casado da igreja da família. Segundo as declarações do adúltero, ele se dispusera a matar Anderson depois de desentendimentos entre o Pastor e a enteada. Anderson teria esbofeteado Simone e o varão casado, num arroubo de ira, jurou vingança. No depoimento, porém, disse o homem que não levou o plano a efeito para não destruir a própria família.
Mas Simone, a primeira namorada, parecia ser a maior interessada na morte do padrasto.
A conclusão do inquérito diz que Anderson fora alvo de outras tentativas de assassinato no seio familiar. Constam várias entradas do Pastor em hospitais da região com sintomas típicos de envenenamento: tontura, vômito, sudorese. Demais, outras pessoas da casa que por engano tomaram sucos destinados ao patriarca também foram hospitalizadas com sintomas semelhantes.
Diante disso, a perícia apontou que Simone fizera algumas pesquisas no Google sobre cianeto e sobre como envenenar comidas. Questionada, a mulher alegou curiosidade vã, já que aprecia séries investigativas.
E a casa não parava de cair.
No escopo das investigações, a polícia descobriu também que os pastores mentiram sobre Daniel, menino que eles diziam ser o único filho biológico do casal. Na verdade, Daniel fora entregue pela mãe biológica à Flordelis e depois registrado por Anderson. Na certidão, diz que ele nascera em casa, o que não é verdade.
E só piora.
Nesse meio tempo, uma fiel da igreja contou uma anedota sacana às autoridades policiais:
Certa feita levara uma amiga mundana ao culto da Flordelis. Assim que a pastora chegou ao púlpito, a convidada, bege, virou à fiel e perguntou:
— Amiga, ela é a pastora?
— É, sim, por quê?
— Mulher, essa aí é cliente cativa do swing que eu frequento.
Conspiração, traições, mentiras.
As investigações e, mais que isso, as confissões de moradores até então silenciosos revelaram ao Brasil o inverso do que se vendia: a casa perfeita, na verdade, era uma confusão dos diabos.
Agora surgem conjecturas macabras — a que a imaginação se permite diante de um quadro real assim tão surrealista: houve ali crimes de pedofilia? Ao longo de todos esses anos, quantas pessoas de fato entraram e saíram daquela casa? Há quem alegue que havia ali rituais e orgias. É possível?
Por ora, temos um desfecho parcial.
O Ministério Público do Rio de Janeiro apontou Flordelis como a mentora intelectual do crime. Segundo os promotores, a motivação foi de ordem econômica, já que Anderson era o gestor dos recursos financeiros da parlamentar e vedava o acesso da mulher às quantias que ela desejava.
A deputada, dada a imunidade que o cargo lhe confere, não pode ser detida — a Câmara deve estudar pedidos pela cassação do mandato. Se perder o posto, decerto vai em cana. Note-se que o PSD já expulsou Flordelis da legenda.
Concluiu-se também que Flávio foi o autor dos disparos, que Lucas forneceu a arma, que Simone tentara matar o padrasto com veneno, que André, Adriano, Marzy e Carlos, filhos, e Rayane, neta, colaboraram em alguma medida com o assassinato. Todos estão presos.
Flordelis ainda nega qualquer envolvimento na morte do marido.
Fonte: Brasil Sem Medo
“E disse-lhe o diabo: Dar-te-ei a ti todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue, e dou-o a quem quero.”A Santa do Morro
(Lucas 4, 6)
No dia 3 de março de 2018, pouco mais de um ano antes de ser assassinado na própria casa, o pastor Anderson do Carmo contava a história da sua família perfeita na Sede Estadual das Assembleias de Deus, no Brás, cidade de São Paulo.
Aos fiéis atentos e emocionados, ele foi dizendo, com todos os trejeitos pentecostais, o enredo meio real, meio fictício que inventou para promover a si mesmo e a sua esposa: a Flordelis.
Anderson disse ali que conheceu sua varoa num culto em que ela cantava como passarinho, numa sexta à noite, na Favela do Jacarezinho, Rio de Janeiro. Conta ter chegado no cômodo diminuto e abarrotado com sessenta crentes nos bancos mais uma porção em pé; disse, também, com notas novelísticas, ter logo notado a jovem morena com sua guitarra louvando belamente ao Senhor. Amor à primeira vista.
No conto, Anderson trabalhava no Banco do Brasil e estudava Administração no Méier. Segundo ele, fora àquela igrejinha pois restava curioso a saber quem era a famosa evangelista da madrugada, a missionária dos bailes funks, a resgatadora dos meninos perdidos e pregadora dos traficantes.
Explicou que Flordelis ganhara no Jacarezinho e circunvizinhança fama de juíza, profeta, mística e santa acolhedora. A moça, conquanto também humilde e sem recursos, embrenhava-se nos becos perigosos do morro recém-tomado pelo Comando Vermelho e saía a tomar das mãos dos bandidos quantas crianças e adolescentes pudesse, enfrentando homens armados até os dentes só com o poder da palavra, com oração e com louvor. Era um espécie de Débora das Tribos de Israel, sacerdotisa a quem recorriam todos os pobres, sobrecarregados, oprimidos e injustiçados.
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Desde aquele culto, disse Anderson, ele se tornou o parceiro inseparável de Flordelis na sua quixotesca missão evangelizadora. E também se casaram.
Quase tudo invenção.
O Pastor Anderson fora, na verdade, um dos adolescentes que Flordelis abrigara em sua casa no início dos anos 90. Era um dos seus filhos adotados.
Pouco se sabe dos primeiros trinta anos de vida de Flordelis dos Santos de Souza. Em entrevistas, ela resume sua infância e adolescência à inquietude que sentia ao ver seus amigos se corrompendo no ambiente hostil das comunidades cariocas — obra-prima do socialista Leonel Brizola. Pouco diz de si mesma, de sua relação com os pais, da escola, de seus primeiros romances. Sua narrativa começa sempre na filantropia dos anos 90.
Nesta época, início da década, ela já tinha três filhos biológicos: Simone, Flávio e Adriano. Era mãe solteira. Ainda assim se lançou à missão salvacionista e passou a recolher em sua casa jovens em situação vulnerável, em vias de entrar para a atraente criminalidade dos morros ou para a prostituição dos bairros chiques. Na primeira leva, abrigou cinco: André, Carlos, Mizael, Cristina e Anderson — o futuro marido e Pastor.
Diz-se que Anderson e Flordelis se conheceram em 1991, quando o menino somava algo em torno de 12 anos. Três anos mais tarde, em 1994, ele com 15, ela com 33, começaram a se relacionar e se assumiram marido e mulher.
Nesse meio tempo, porém, algumas coisas esquisitas, cabeludas, devem ter acontecido no barraco do Beco da Guarani, onde moravam Flordelis e seus protegidos.
Pergunto: o que mais podia resultar disso de juntar sob o mesmo teto, num barraco espremido, no calor lúbrico da Cidade Maravilhosa, uma porção de adolescentes, meninos e meninas exalando feromônio sem qualquer impeditivo de sangue que pudesse assossegar seus impulsos do amor?
Sabe-se de pelo menos um casal formado entre esses primeiros meio-irmãos: Simone, filha biológica, e Anderson, filho adotivo. Os jovens entabularam um caso, talvez a primeira grande paixão de ambos — e que males não advêm de primeiras paixões traumaticamente frustradas?
Anos depois, como já ficou dito, o namorado da filha caiu nos braços mais maduros da mãe, e Anderson foi de pouco em pouco se tornando o chefe daquela família. De filho passou a pai.
E parece que nele havia tino para o mando. Mais esperto que os outros, filho de uma família menos desestruturada — Anderson não era órfão, nem drogado, nem bandido —, logo o rapazote assumiu entre os irmãos e depois enteados uma liderança natural, carismática. Claro que sempre há exceções, e, por exemplo, o Flávio, filho biológico de Flordelis que contava quase os mesmos anos de Anderson, não aceitou com tanta parcimônia a apoteose do intruso.
Como seja, Anderson, menino de bom papo, descolado, foi ganhando terreno.
Ainda na década de 90, ele percebeu o potencial mercadológico de toda aquela bonomia. Passou a filmar os cultos e as cantorias de Flordelis e vender os CDs e VHs pelas ruas do Rio de Janeiro, levando junto uma espécie de portfólio com as menções feitas à esposa na mídia, como para promovê-la. O garoto visionário, seja por malandragem, seja por real devoção, enxergava na amante uma artista a ser lapidada.
Mas antes do sucesso ou fracasso dessa empreitada marqueteira do Pastor Anderson, vale dizer que foi no começo do enlace entre a mãe e o filho afetivo, Jocasta e Édipo de segunda mão, que aconteceu o milagre de multiplicação dos adotados.
A 12 de setembro de 1994, o Rio de Janeiro foi palco de mais um crime horrendo. Homens que faziam parte de um grupo de extermínio passaram de carro e abriram fogo contra meninos de rua apinhados na calçada da Central do Brasil. O estampido dos tiros acordou a Cidade.
Diz a narrativa de Anderson que naquela mesma madrugada 37 sobreviventes do atentado, lá no Centro, correram até o Jacarezinho a pedir socorro à santa da favela.
Essa versão ainda é a oficial. No entanto, uma rápida pesquisa no mapa carioca mostra que da cena do crime até o barraco da Guarani distam pouco mais de 10 quilômetros. Na sola e na raça, calcula-se duas horas para chegar.
Imaginem, então, o cortejo tétrico de dezenas de crianças, quatorze das quais bebês de colo, ensanguentadas, olhos vidrados, atravessando avenidas inteiras diante de carros, viaturas, postos policiais, sem que vivalma as detivesse.
Não obstante a inverossimilhança, é a versão que ficou. De fato, a casinha da auxiliadora dos pobres, da noite para o dia, ficou abarrotada de crianças — e o caso ganhou repercussão nacional.
Então, depois de um período em evidência na grande mídia e nas repartições do juizado de menores do Rio, que queria tirar da benfeitora a guarda irregular da filharada, Flordelis seguiu sua rotina de cultos, obras de misericórdia e cuidados domésticos, ao lado de Anderson, sob a sombra do anonimato — como sói ser a vida dos santos.
A glória mundana
Mas a vida de caridade modesta ficou para trás a partir de 2009.
Data desse ano o filme “Flordelis — Basta uma palavra para mudar”. No elenco, feras globais do quilate de um Reynaldo Gianecchini, Bruna Marquezine, Marcelo Anthony, Deborah Secco, Cauã Reymond, Rodrigo Hilbert, Fernanda Lima e Letícia Spiller. Os artistas, comovidos com a história da mulher que colecionava feitos heróicos e miraculosos, não cobraram cachê.
Esta obra traz a versão imagética da mesma narrativa contada pelo Pastor Anderson, na vigília do Brás, entre lágrimas, preces e berros em língua angélica.
A película imita um documentário em que os atores dão os depoimentos no lugar dos filhos de Flordelis. Cada um deles narra, como se fossem os reais agraciados, como a mãe adotiva os tirara do caminho do crime, das drogas, da prostituição, do abandono.
É de se perguntar: não seria mais natural os verdadeiros beneficiados representarem-se a si mesmos? A história não ganharia em vida, em força expressiva, em emoção? Em regra, não são assim os documentários?
Em toda a filmagem, a única personagem real é Flordelis. Entre um testemunho e outro ela aparece contextualizando os episódios e dando sua visão sobre os fatos. No fim, ela aparece apelando aos chefes da bocada para que não matem um jovem, e os bandidos a obedecem.
Como seja, toda a esquisitice passou batida. A história era por demais bonita para ser posta em dúvida. Seria até inumano questionar. Só um crápula, um canalha, um fascista torceria o nariz, apontaria contradições. Passou batido.
Vale notar que Anderson, filho-marido-empresário, foi o produtor executivo do filme. Talvez também o roteirista.
No final das contas, a peça foi bem recebida pelo público e pela crítica — menos pela qualidade da produção que pela história narrada — e a renda foi revertida às justas causas da Dona Flor. Com esse mesmo dinheiro a enorme família, já somando 50 irmãos, se mudou para o casarão bacana em Niterói, onde a maioria deles vive até hoje.
Também com a grana do filme, Anderson lançou Flordelis na carreira musical, emplacando a esposa-mãe na badalada MK Music, importante gravadora no segmento gospel cujo dono é o senador Arolde de Oliveira.
Alavancado pelo filme, o primeiro CD de Flordelis, o “Fogo e Unção”, de 2010, bombou e ganhou o Disco de Ouro, com mais de 40 mil cópias vendidas.
A mulher simples, de traços grosseiros, cabelos rebeldes e dentes faltantes, mulher que parecia ter a alma toda dominada pelo amor caridoso, de pouco em pouco ia se transformando numa diva da música gospel.
Data desta mesmo período, 2009-2010, o upgrade na carreira missionária do casal.
Conta-se que desde os idos de 90 Flordelis realizava cultos cristãos em sua casa. Mais tarde, como o número de fiéis crescera a mais da conta, foi preciso mudar as reuniões para a igrejinha do tal primeiro encontro do jovem Anderson com sua ninfa varoa de melífluo cantar, ainda na favela de Jacarezinho. Por fim, em 1999, fundaram oficialmente a Comunidade Evangélica Ministério Flordelis, igreja erguida com a colaboração dos filhos mais velhos — alguns dos quais inclusive foram ungidos pastores.
Não obstante, o filme foi divisor de águas também no ramo eclesial. Com o dinheiro e a fama que obtiveram, em setembro de 2010 o casal resolveu organizar um megaevento em São Gonçalo: o Grande Congresso Internacional de Missões. Alugaram para tanto um terreno de 9000 m2, ergueram ali um galpão enorme, em 60 dias, e botaram lá, no espaço de uma semana, mais de 100 mil pessoas.
Depois disso a sede do Ministério Flordelis, que agora tem uma porção de filiais, se transferiu para um templo de respeito também em São Gonçalo. E lá Flordelis continua realizando seus cultos, lendo Bíblia, expulsando demônios.
E nessa toada foi só aumentando a fama da Mãe de 55, como ela gosta de se apresentar. Mais CDs foram lançados, a história de amor e superação da família ganhou reportagens especiais no Fantástico, no Domingo Espetacular, no Rodrigo Faro, o casal saiu de canto a outro, no Brasil e no estrangeiro, dando palestras e comovendo corações.
Havia como melhorar?
Quem vê a fachada não vê os quartos
Não obstante todas essas conquistas, o interior da casa era ignoto. No fundo, ninguém sabia o que de fato se passava com aquele povaréu. Cerca de 60 estranhos vivendo sob o mesmo teto. Adultos, adolescentes, crianças. Cada um com seus ressentimentos, com seus traumas. Afinal, não morava ali a filha que viu a mãe roubar seu primeiro namorado? Mais: é muito maldoso suspeitar que Anderson, no viço da idade, corria procurar na antiga namorada o que a mãe-esposa, já em caminhos da velhice, não podia mais lhe dar? Há quem diga que isso é fato líquido, que de fato rolava esse caso paralelo. E, se era assim, o que não passava pela cabeça dos filhos que assistiam aos pais vendendo uma vida perfeita na TV e na igreja enquanto a realidade, a realidade que só a eles era dado enxergar, era muito outra?
Depoimentos recentes de filhos que não puderam contar no filme badalado a própria história, dão conta de que o Lar Flordelis vivia num duro regime político.
Havia o casal governante, uma elite aristocrática e a plebe. O monarca, dono do Tesouro, vivia em constante tensão com a rainha; filhos legítimos, mais a leva de adotados pré-chacina, formavam um grupo de privilegiados, a quem cabia os melhores alimentos, os presentes especiais, os cargos nas igrejas — portanto poder e dinheiro —, as boquinhas na política; depois havia os quarenta e tantos filhos tardios que viviam amontoados nos quartos mais simples, que só comiam pão seco no café e macarrão com salsicha nas outras refeições, filhos que não tinham a atenção dos pais senão quando diante das lentes de algum repórter. O casal vivia no terceiro andar. O segundo era reservado aos nobres. O rés-do-chão cabia à gentalha. Que mágoas, que rancores uma tal divisão não haveria de criar?
Servos de dois senhores?
Malgrado as estranhezas, quem tenha siso há de concordar que a primeira Flordelis, a altruísta e abnegada, era uma mulher admirável. É possível que caiamos do cavalo e descubramos que mesmo aquela primeira versão fora uma fraude. É possível. Entretanto, antes disso, fica nossa inocência cristã e nosso reconhecimento de que a obra daquela irmãzinha crente de fé inabalável era nada menos que heroica, digna mesmo de filmes com os melhores atores, e de romances, poemas, loas, canções.
Porém, a Flordelis que emerge em 2009, depois do filme, é toda uma atriz, uma personagem de si mesma — em boa medida fabricada pelo marido. Via-se que os seus bons feitos estavam se transformando em peças de um marketing apelativo, propaganda através da qual ela e Anderson iam conquistando o mundo enquanto perdiam a casa.
O auge desse processo foi a eleição da mulher à Câmara dos Deputados. Nas eleições de 2018, Flordelis foi uma das mais votadas legisladoras do Rio de Janeiro, com 190 mil votos, e assim chegou ao Parlamento Nacional — com o marido por detrás da campanha.
De humilde acolhedora dos órfãos num beco esquecido de uma favela carioca passou a cantora importante, dona de igreja bem frequentada, palestrante viajada, política bem-sucedida. Flordelis deixou o terreno árido da caridade para fazer do palanque da vanglória o seu patíbulo.
O Crime e a Queda
A 16 de junho de 2019, todos os jornais noticiaram a morte brutal do Pastor Anderson. Trinta tiros à queima-roupa na garagem do casarão da família no bairro de Pendotiba, Niterói. Uma barbárie.
No enterro, centenas de pessoas rodeavam o caixão diante do qual chorava convulsivamente a recém-viúva. Aos seus ombros, alguns dos filhos. Dentre os quais, Flávio, um dos oito nobres, filho legítimo que jamais engoliu o pai-irmão.
No mesmo dia Flávio foi preso. Horas depois, a polícia prendia também Lucas, filho adotivo de Flordelis. Na ocasião, porém, ambos foram detidos por motivos alheios ao crime de sangue: Flávio por violência doméstica; Lucas por tráfico de drogas.
Abriram-se enfim as portas da casa e o país sentiu um cheiro pútrido e rançoso.
Daí começaram as contradições de Flordelis. Num primeiro momento ela alegou que o casal sofrera uma tentativa de assalto. Segundo ela, na noite anterior ao crime o casal saíra a dar uma volta de carro no Rio, como se adolescentes. Disse que jantaram, namoraram, que estiveram felicíssimos. Então, no retorno, afirma ela, notaram um motoqueiro suspeito a lhes seguir. Viu-o, mas ele logo desapareceu.
Chegando em casa, noite plácida, bairro tranquilo, volta das 3h da matina, Flordelis entrou primeiro na casa para ver os filhos (?) e, conta ela, recomendou ao marido que fechasse logo o portão da garagem — porquanto ele tinha o costume, no Rio de Janeiro, de só o fechar quando dentro de casa (?).
Então, numa versão dada à polícia, Flordelis narra que já dormia quando ouviu os disparos. Nesta versão, depois de se alvoroçar, desceu e viu o marido morto.
Noutra versão, a mais propalada, a mulher diz que subiu, travou contato com o filho Ramon, de 18 anos, e então ouviu seis estampidos: de primeiro quatro, um pausa, e então mais dois.
Diz ela que se criou um tumulto na casa e que não encontrava por lá o marido. Nessa versão, ela não viu o corpo de Anderson, pois impedida pelos filhos.
De todo modo, a versão do assalto perdeu força, pois câmeras de segurança não flagraram nem sinal de perseguição.
Para complicar ainda mais a trama, celulares importantes simplesmente sumiram, dentre os quais o do Pastor. E mais: quando técnicos foram periciar o carro do casal, Flordelis os impediu firmemente, no que a família da vítima protestou e começou a acusar a deputada de estar obstruindo as investigações.
Dali um tanto Mizael, filho adotivo de Flordelis e vereador em São Gonçalo, rompeu com a mãe, suspeitando que ela fraudara uma carta em que ele supostamente se confessava mandante do crime. Mizael era conhecido na política com o adjunto da Flordelis. Agora é só Mizael.
Depois descobriu-se que Simone, ex-namorada do irmão-padrasto, tinha um caso com um homem casado da igreja da família. Segundo as declarações do adúltero, ele se dispusera a matar Anderson depois de desentendimentos entre o Pastor e a enteada. Anderson teria esbofeteado Simone e o varão casado, num arroubo de ira, jurou vingança. No depoimento, porém, disse o homem que não levou o plano a efeito para não destruir a própria família.
Mas Simone, a primeira namorada, parecia ser a maior interessada na morte do padrasto.
A conclusão do inquérito diz que Anderson fora alvo de outras tentativas de assassinato no seio familiar. Constam várias entradas do Pastor em hospitais da região com sintomas típicos de envenenamento: tontura, vômito, sudorese. Demais, outras pessoas da casa que por engano tomaram sucos destinados ao patriarca também foram hospitalizadas com sintomas semelhantes.
Diante disso, a perícia apontou que Simone fizera algumas pesquisas no Google sobre cianeto e sobre como envenenar comidas. Questionada, a mulher alegou curiosidade vã, já que aprecia séries investigativas.
E a casa não parava de cair.
No escopo das investigações, a polícia descobriu também que os pastores mentiram sobre Daniel, menino que eles diziam ser o único filho biológico do casal. Na verdade, Daniel fora entregue pela mãe biológica à Flordelis e depois registrado por Anderson. Na certidão, diz que ele nascera em casa, o que não é verdade.
E só piora.
Nesse meio tempo, uma fiel da igreja contou uma anedota sacana às autoridades policiais:
Certa feita levara uma amiga mundana ao culto da Flordelis. Assim que a pastora chegou ao púlpito, a convidada, bege, virou à fiel e perguntou:
— Amiga, ela é a pastora?
— É, sim, por quê?
— Mulher, essa aí é cliente cativa do swing que eu frequento.
Conspiração, traições, mentiras.
As investigações e, mais que isso, as confissões de moradores até então silenciosos revelaram ao Brasil o inverso do que se vendia: a casa perfeita, na verdade, era uma confusão dos diabos.
Agora surgem conjecturas macabras — a que a imaginação se permite diante de um quadro real assim tão surrealista: houve ali crimes de pedofilia? Ao longo de todos esses anos, quantas pessoas de fato entraram e saíram daquela casa? Há quem alegue que havia ali rituais e orgias. É possível?
Por ora, temos um desfecho parcial.
O Ministério Público do Rio de Janeiro apontou Flordelis como a mentora intelectual do crime. Segundo os promotores, a motivação foi de ordem econômica, já que Anderson era o gestor dos recursos financeiros da parlamentar e vedava o acesso da mulher às quantias que ela desejava.
A deputada, dada a imunidade que o cargo lhe confere, não pode ser detida — a Câmara deve estudar pedidos pela cassação do mandato. Se perder o posto, decerto vai em cana. Note-se que o PSD já expulsou Flordelis da legenda.
Concluiu-se também que Flávio foi o autor dos disparos, que Lucas forneceu a arma, que Simone tentara matar o padrasto com veneno, que André, Adriano, Marzy e Carlos, filhos, e Rayane, neta, colaboraram em alguma medida com o assassinato. Todos estão presos.
Flordelis ainda nega qualquer envolvimento na morte do marido.
Fonte: Brasil Sem Medo